Crónica de Jorge C Ferreira | O Que Fomos. O Que Somos

O Que Fomos. O Que Somos
por Jorge Ferreira

 

Tragam-me as noites perdidas em caves, bas-fonds e outros sítios cheios de fumo e outros vícios. O pouco e o estranho dormir. A música, sempre a música presente. Muitos músicos, amarelos devido ao sol que nunca apanhavam. A vida feita ao contrário.

A chamada vida da noite não começava quando escurecia. Era preciso deixar a noite crescer. Beber um café depois de jantar. Jogar uma partida de bilhar e depois partir ao encontro da magia. Tudo acontecia quando a noite era mais noite.

Uma bailarina do cabaret da moda passava cheia de brilhantes a caminho do trabalho. O mundo que parecia andar ao contrário. A imensa impressão que o sol lhe fazia. Ser da noite tem custos. Há sempre gritos que ficam gravados na memória. Um travesti que demora horas a pintar-se para sair. A vampe da rua. A prostituta. O mundo a mudar.

As músicas que estavam na moda. O disco-jockey dentro da cabine transparente. As luzes esquisitas e as danças de cansar corpos. Quando apareciam os slows era o tempo de aconchegar ternuras. Das falas aos ouvidos. Das juras eternas. Do sonhar a bailar. Da noite encantada numa casa que não era de ninguém.

O whisky que se ia esvaziando da garrafa de alguém. Os dedos a fazerem rodar o gelo nos copos. Gente que saía e gente que entrava. Uma população flutuante que corria todos os poucos lugares que existiam na cidade. A gorjeta ao porteiro para ter entrada garantida. A triste ideia de que tudo se compra. Tempos de cansaço. O desvario feito vida. As mulheres vão à casa de banho retocar a pintura. Partir para outra noite

A garrafa que devia durar o maior tempo possível. Paga à cabeça e o nome escrito numa argola que se enfiava no gargalo. Quando começaria a clarear? Os amigos com carros que andavam mais que aquilo que deviam. Assim se andava de sítio em sítio, como os bêbados andavam, durante o dia, de tasca em tasca. Um tinto baptizado que enrouquecia as gargantas. O tabaco de onça. A mortalha, o cuspo na goma. Um maço de Marlboro vazio no chão. Os despojos da noite.

Tenho setenta e um anos e algumas peças a menos. Estou sempre a ouvir que sou pessoa de risco. Que tenho de ter cuidado. Máscaras, locais, nada de ajuntamentos. Já estive sem sair de casa. Uma pena que me foi imposta sem julgamento nem culpa formada. Somos dois aqui em casa. Por vezes arriscamos e vamos jantar numa esplanada aqui perto. Parecemos fugitivos. Saímos quando já está a ficar escuro e descemos a rua. Os empregados conhecem-nos. Arranjam-nos mesa. Desinfectam-na juntamente com as cadeiras. Nós desinfectamos as mãos. Tomamos assento. Chega a lista. Escolhemos. Vamos desinfectar de novo as mãos. Chega a comida. Os talheres higienicamente embalados. Penso que, com tanta higiene, estamos a perder defesas naturais. Dizem que sou parvo. Comemos cumprindo todas as regras. Pagamos. Damos e recebemos o cartão. Já não bebemos bebidas alcoólicas há muitos anos. Eu não fumo. Estamos prontos.

Desinfectar de novo as mãos. Colocar a máscara. Caminhar pela calada da noite até casa. Não falamos com ninguém durante o caminho. Ninguém fala connosco. Colocamos o código para abrir a porta da rua. Com a chave abrimos a porta de casa. Descalçamos os sapatos que trazemos da rua e calçamos outros. Desinfectamos as mãos de novo e vamos mudar de roupa.

Estão fartos? Eu também. Abraços e cuidem-se.

“Tu parece que estás a gozar com as pessoas.»

Fala da Isaurinda.

«Disse alguma mentira? Foi a vida que levámos em novos e esta que levamos agora.»

Respondo.

«Tu sabes que eu não gosto nada que andem sempre nessa esplanada.»

De novo Isaurinda e vai. Um ar zangado.

Jorge C Ferreira Agosto/2020(264)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Que Fomos. O Que Somos”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Ivone, minha querida amiga/irmã. Estes tempos tão resistentes. O enigma. O não saber o amanhã. Abraço

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado Mena. Sempre belos textos os teus comentários. Gratidão minha. Abraço

  3. Jorge C Ferreira

    Obrigado Regina. Tens razão. A razão que a aprendizagem da vida nos dá. Grato pelo comentário. Abraço

  4. Jorge C Ferreira

    Obrigado Isabel. Muito díspares. Como díspares são os modos de resistir. Abraço

  5. Jorge C Ferreira

    Obrigado António. As várias noites uma multiplicidade de viveres. Grande abraço

  6. Jorge C Ferreira

    Obrigado. Eulália. Os diferentes tempos e as diferentes máscaras. Tempos de resistir. Abraço

  7. Jorge C Ferreira

    Obrigado Manuela. Dois tempos diferentes em que fintávamos e fintamos a vida. A resistência. Grande abraço.

  8. Manuela Moniź

    ” 0 QUE FOMOS. O QUE SOMOS.”

    Adorei esta tua crónica, Jorge! Escreves
    e descreves épocas e vivências tão diferentes, de uma maneira espantosa.
    Entre a memória e a vida do que somos hoje, acumulamos experiências únicas, boas e más e a elas sobrevivemos. Não podemos, agora, deixar-nos derrotar neste tempo inimaginável de tão louco. Havemos de agarrar a vida com garra e ternura. Não é fácil, não!
    Um grande abraço, meu amigo.
    Melhores dias virão.

  9. Eulália Pereira Coutinho

    O que fomos. As saudades que sentimos. As memórias do passado, distantes no tempo. Os momenetos felizes, numa idade de euforia. Nostalgia.
    O que somos. Viver cada momento. A incerteza. Saudade do tempo saudável. Falta do abraço. Amigos e família à distância. Insegurança.
    Começa a fartar máscaras sem rostos. Viver sem viver.
    Obrigada amigo.
    Um abraço.

  10. António Feliciano de Oliveira Pereira

    É o mundo da noite é a vida no cenário da noite.
    Já tive a minha dose e curei-me.
    Tenho saudades!
    Um abraço, Jorge!

  11. Isabel Maria Pinto Soares Torres

    Mais um belo (e triste, mas cru) texto sobre quotidianos díspares. Que tempo futuro?

  12. Regina Conde

    Os riscos das noites vividas eram desafios individuais e colectivos, quantas vezes levados ao limite. Os dias e noites que vivemos agora são o desconhecido. Gestos repetidos e cansantivos.
    Questiono-me se acaso acordassemos e os dias tivessem voltado a Fevereiro, seríamos expontâneos nos gestos? Reaprender um mundo diferente, por enquanto o nosso dia a dia. Abraço Jorge.

  13. Mena Geraldes

    O antes e o depois.
    Os riscos de outrora. Os riscos de hoje em dia.

    A vida noturna. As suas figuras “típicas” salpicando a noite.
    Os excessos. A bebida. O tabaco. As horas tardias.
    As olheiras. As ressacas. O sexo fácil.
    Percorrer todas as tasquinhas. Deixar um rasto de insatisfação…
    Uma crónica tão real e tangível que nos foi possível encontrar essas noites. Ao virar da memória.

    O hoje.
    As máscaras. Os pactos de silêncio. Os corpos intocáveis. Os desusados risos. Os olhares que se procuram.
    A solidão. Essa mesma que nos habita quando saímos porta fora.
    O gesto repetitivo da disenfeção das mãos.
    Nunca as minhas mãos estiveram tão fartas uma da outra.
    Nunca a minha face esteve tão impaciente como agora.
    Nunca os braços pediram abraços como agora.
    A exaustão.
    As instruções são claras! Inequívocas.
    Não existe livro de reclamações.
    A crónica dos nossos tristes dias. E ninguém como o Jorge para a relatar. Este ofício de escrevinhador-mor. Perene lucidez.
    Contestação.
    Consciência.
    Razão.

    Gratidão, meu amigo.💗

  14. ivone Teles

    Meu querido Jorge, descreves uma vida que conhecia de ” ouvir falar”, de ler e de ver em filmes. Numa Cidade da ” Província” era assim. E, o que aqui se passava, não era falado. Mesmo mais ” crescida “, casada, com filho, frequentávamos o ATENEU de COIMBRA, convivíamos no Clube de Rugby, na Cooperativa Bonifrates e entre amigos em casa de uns dos outros. Mas também estranhamos o ” actual normal “. Andamos meio perdidos. Mascarados, vamos sair só para o essencial. Nada de tocar, abraçar, beijar. Sempre a desinfectar, chinelos à porta…………sabes como é.
    Meu querido Jorge, como será o ” normal ” que virá? Aguardaremos, para não errar. Abraços virtuais, assim como beijinhos para ti e a tua ” tribo”.

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